sábado, 31 de outubro de 2015

BD0317. O Falcão

Eis mais um notável trabalho de Garcês, este retratando a resistência do povo português às invasões napoleónicas e denunciando o colaboracionismo de alguns oficiais. «O Falcão» foi publicado nos fascículos 73 a 103  do Cavaleiro Andante, com início em 23 de Maio de 1953.

Em Maio de 1987, alguns meses depois de Garcês comemorar a publicação do seu primeiro trabalho de BD em «O Mosquito» e designado «O inferno verde», surge uma segunda edição no fascículo 3 dos Cadernos de Banda Desenhada, um documento muito rico com uma entrevista ao autor de Luis Beira, um texto de José de Matos Cruz e um inventário acerca de BD sobre a História de Portugal elaborado por Jorge Magalhães. Aqui fica o texto de Matos Cruz:


Entre 23 de Maio e 19 de Dezembro de 1953, dos números 73 ao 103, o Cavaleiro Andante publicava uma das bandas desenhadas que mais renderiam o culto dos leitores: O Falcão, com texto de Mascarenhas Barreto e ilustrações de José Garcês, cuja intensidade mítica se projeta da própria obra ao ciclo de incidências que agregou.

Trata-se duma abordagem centrada na invasão de Portugal, pelas forças francesas sob a liderança do general Andoche Junot, e que decorreu de 15 de Outubro de 1807 a 30 de Agosto de 1808. Cerca de dez meses — dos quais se cumprem, agora, cento e oitenta anos — que abalaram a unidade da pátria e, de modo crucial, marcariam o futuro do País, tendo Garcês ousado a respetiva evocação em apenas trinta inspiradas pranchas, aliás escamoteando a estrita abordagem verista, implícita numa reconstituição histórica. Pelo contrário, pode mesmo aferir-se que essa terá sido a ênfase que menos o interessou: não deixando de pontuar a narrativa com sinais duma circunscrição objetiva, estimulá-lo--ia sobretudo a recorrência virtual, essa abrangente margem na qual se ritualizam a lenda heroica e a gesta popular.

As invasões francesas servem, assim, de fundo histórico a uma transfiguração lendária, que resulta do eco de resistência entre a população — desde que germina e se mobiliza, até ao papel decisivo que desempenhará na expulsão do inimigo. Consubstancia-se deste modo uma identificação em prol da autonomia nacional, aliás personificada por um novel e como que predestinado nobre, D. José de Ribamar — cujas façanhas se precipitarão após a devassa de propriedades e destruição do seu solar... Ao contemplar os escombros calcinados, torna-se solene um pacto reabilitador, correspondendo — ao desenraizamento estratégico e deambulatório — a assunção duma mística secreta como revolucionário, sob o código de Falcão. Segundo a sugestiva planificação, tudo se determina sensivelmente a meio do entrecho, na origem concebido para ser cada semana divulgado, cabendo destacar o clímax de alusões gráficas que nessa altura (lance número 17) é estabelecido por Garcês, paralelamente culminando a fase de viragem em que se decidirão os desígnios de enfrentamento e liberdade.

Persiste, deste modo, um contínuo fluxo de implicação ou ressonâncias entre o drama singular e o levantamento coletivo, a gestação duma celebridade oculta mas providencial — por quem protagoniza os acontecimentos que, em paralelo, desfilam e ficarão, na generalidade, preservados pelo registo oficial... O Falcão colhe nesse tributo ao sortilégio das personalidades carismáticas, fundido com a versão institucional que transparecerá da própria realidade, uma fecunda margem de recriação, sagrando o eterno conflito entre os valores da coragem, bravura ou lealdade, e os dilemas da traição, do compromisso, da acomodação ou da desonra. Lamente-se, contudo, que Garcês haja podido apenas indicar o contexto romântico da intriga, num enquadramento individual — quanto à evolução afetiva entre Ribamar e D. Leonor de Monforte — em que se privou de definir aspetos de aliciante contraste, como a psicologia feminina ou a latente gama de tensões, entre o vínculo sentimental e a estima protetora do irmão, que por ela terá realizado uma opção contra a própria natureza dos seus ideais...

Aliás, o élan da guerrilha — supremo apelo de existência aventurosa, vulnerável e volúvel segundo as mutações da ameaça exterior, que viola um território como se visasse o coração dum povo, estimulando o resgate e o rasgo solitário mas, enfim, aglutinador — seria este o sortilégio primordial que motivou Garcês a constituir a saga de O Falcão. Sem recurso a filacteras, a inserção do texto em rodapé foi concebida de forma adequada a estabelecer uma leitura não só paralela como, basicamente, convergência e nuançando — assim — o relato de solenidade clássica... Neste amplo fresco se organiza uma ação sintética, mas equilibrada pela estratégia de corte entre a evocação geral e a conjuntura particular — intercaladas e por vezes, mesmo, de inconclusa resolução. Implícita no painel retrospetivo, emoldura-se uma atmosfera de época, em que o vigoroso estilo de José Garcês ressalta a magnitude paisagística, o carácter da arquitetura, o rigor do vestuário, a fluência coreográfica e a expressão animalística. Um desenho ágil, de traço desenvolto e gracioso, colhe a modernidade das figuras esbeltas, vitalizando certo hieratismo na gestualização corporal, que lhes atribui uma elegante sobranceria icónica.

José de Matos-Cruz


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