Eis mais um notável trabalho de Garcês, este retratando a resistência do povo português às invasões napoleónicas e denunciando o colaboracionismo de alguns oficiais. «O Falcão» foi publicado nos fascículos 73 a 103 do Cavaleiro Andante, com início em 23 de Maio de 1953.
Em Maio de 1987, alguns meses depois de Garcês comemorar a publicação do seu primeiro trabalho de BD em «O Mosquito» e designado «O inferno verde», surge uma segunda edição no fascículo 3 dos Cadernos de Banda Desenhada, um documento muito rico com uma entrevista ao autor de Luis Beira, um texto de José de Matos Cruz e um inventário acerca de BD sobre a História de Portugal elaborado por Jorge Magalhães. Aqui fica o texto de Matos Cruz:
Em Maio de 1987, alguns meses depois de Garcês comemorar a publicação do seu primeiro trabalho de BD em «O Mosquito» e designado «O inferno verde», surge uma segunda edição no fascículo 3 dos Cadernos de Banda Desenhada, um documento muito rico com uma entrevista ao autor de Luis Beira, um texto de José de Matos Cruz e um inventário acerca de BD sobre a História de Portugal elaborado por Jorge Magalhães. Aqui fica o texto de Matos Cruz:
Entre 23 de Maio e 19 de Dezembro de 1953, dos números 73 ao
103, o Cavaleiro Andante publicava uma das bandas desenhadas que mais renderiam
o culto dos leitores: O Falcão, com texto de Mascarenhas Barreto e ilustrações
de José Garcês, cuja intensidade mítica se projeta da própria obra ao ciclo de
incidências que agregou.
Trata-se duma abordagem centrada na invasão de Portugal,
pelas forças francesas sob a liderança do general Andoche Junot, e que decorreu
de 15 de Outubro de 1807 a 30 de Agosto de 1808. Cerca de dez meses — dos quais
se cumprem, agora, cento e oitenta anos — que abalaram a unidade da pátria e,
de modo crucial, marcariam o futuro do País, tendo Garcês ousado a respetiva
evocação em apenas trinta inspiradas pranchas, aliás escamoteando a estrita
abordagem verista, implícita numa reconstituição histórica. Pelo contrário,
pode mesmo aferir-se que essa terá sido a ênfase que menos o interessou: não
deixando de pontuar a narrativa com sinais duma circunscrição objetiva,
estimulá-lo--ia sobretudo a recorrência virtual, essa abrangente margem na qual
se ritualizam a lenda heroica e a gesta popular.
As invasões francesas servem, assim, de fundo histórico a
uma transfiguração lendária, que resulta do eco de resistência entre a
população — desde que germina e se mobiliza, até ao papel decisivo que
desempenhará na expulsão do inimigo. Consubstancia-se deste modo uma identificação
em prol da autonomia nacional, aliás personificada por um novel e como que
predestinado nobre, D. José de Ribamar — cujas façanhas se precipitarão após a
devassa de propriedades e destruição do seu solar... Ao contemplar os escombros
calcinados, torna-se solene um pacto reabilitador, correspondendo — ao desenraizamento
estratégico e deambulatório — a assunção duma mística secreta como
revolucionário, sob o código de Falcão. Segundo a sugestiva planificação, tudo
se determina sensivelmente a meio do entrecho, na origem concebido para ser
cada semana divulgado, cabendo destacar o clímax de alusões gráficas que nessa
altura (lance número 17) é estabelecido por Garcês, paralelamente culminando a
fase de viragem em que se decidirão os desígnios de enfrentamento e liberdade.
Persiste, deste modo, um contínuo fluxo de implicação ou
ressonâncias entre o drama singular e o levantamento coletivo, a gestação duma
celebridade oculta mas providencial — por quem protagoniza os acontecimentos
que, em paralelo, desfilam e ficarão, na generalidade, preservados pelo registo
oficial... O Falcão colhe nesse tributo ao sortilégio das personalidades
carismáticas, fundido com a versão institucional que transparecerá da própria
realidade, uma fecunda margem de recriação, sagrando o eterno conflito entre os
valores da coragem, bravura ou lealdade, e os dilemas da traição, do
compromisso, da acomodação ou da desonra. Lamente-se, contudo, que Garcês haja
podido apenas indicar o contexto romântico da intriga, num enquadramento
individual — quanto à evolução afetiva entre Ribamar e D. Leonor de Monforte — em
que se privou de definir aspetos de aliciante contraste, como a psicologia
feminina ou a latente gama de tensões, entre o vínculo sentimental e a estima protetora
do irmão, que por ela terá realizado uma opção contra a própria natureza dos
seus ideais...
Aliás, o élan da guerrilha — supremo apelo de existência
aventurosa, vulnerável e volúvel segundo as mutações da ameaça exterior, que
viola um território como se visasse o coração dum povo, estimulando o resgate e
o rasgo solitário mas, enfim, aglutinador — seria este o sortilégio primordial
que motivou Garcês a constituir a saga de O Falcão. Sem recurso a filacteras, a
inserção do texto em rodapé foi concebida de forma adequada a estabelecer uma
leitura não só paralela como, basicamente, convergência e nuançando — assim — o
relato de solenidade clássica... Neste amplo fresco se organiza uma ação
sintética, mas equilibrada pela estratégia de corte entre a evocação geral e a
conjuntura particular — intercaladas e por vezes, mesmo, de inconclusa resolução.
Implícita no painel retrospetivo, emoldura-se uma atmosfera de época, em que o
vigoroso estilo de José Garcês ressalta a magnitude paisagística, o carácter da
arquitetura, o rigor do vestuário, a fluência coreográfica e a expressão
animalística. Um desenho ágil, de traço desenvolto e gracioso, colhe a
modernidade das figuras esbeltas, vitalizando certo hieratismo na gestualização
corporal, que lhes atribui uma elegante sobranceria icónica.
José de Matos-Cruz